Carlos Nejar reúne sua poesia (quase) completa nos volumes AMIZADE DO MUNDO E JOVEM ETERNIDADE . Falamos de "quase" em dois sentidos: não apenas pelo fato de alguns textos não integrarem a coletânea (como, por exemplo, OS VIVENTES, 1999), mas também porque, para Nejar, nenhuma poesia consegue ser rigorosamente "completa". Definindo-se, mais de uma vez como "Servo da Palavra", Nejar sabe que poeta é aquele que persegue o impossível, uma espécie de acendedor de relâmpagos, ébrio de uma luz que, depois de passar, deixa o escuro mais escuro, pelo contraste com o brilho extinto. Vestígios dessa luz ainda queimam as mãos do poeta: palavras-labareda com que ele reviverá a memória do clarão perdido no corpo do texto encontrado.
No panorama da moderna poesia brasileira, Nejar ocupa uma posição consolidada, e, sob vários aspectos, à contracorrente de suas tendências mais ostensivas. O diálogo do poeta é antes com as grandes vozes da lírica ocidental (Dante, Goethe, e, mais próximos, Pound e Eliot) do que com seus contemporâneos, sem esquecermos o fascínio que lhe desperta o que poderíamos denominar "discursos fundadores": a Bíblia , a Ilíada , Os Lusíadas - não para celebrar confortavelmente a segurança de uma "origem", mas, ao contrário, para indagar o que há aquém do zero, ou, na ponta oposta do futuro, para perscrutar o que se esconde ainda além do invisível. Verbo dos deslimites, na coabitação de tempos antagônicos, de geografias díspares, concretas e impalpáveis ("Nos sentamos/ na tora de um milênio"). Verbo porta-voz dos ventos, dos abalos sísmicos, que se alça ao tom profético e místico ("Tudo é continuação de outra continuação mais inefável: Deus"), mas verbo que também sabe infletir-se na dicção intimista das canções à bem-amada Elza: "Provados somos e o provar é um gomo/ desta romã partida pelas águas./ Somos o fruto, somos a dentada/ e a madureza de ir no mesmo sonho". Mas, sobretudo, palavra movida pela paixão, pelo apelo e apego ao outro, pela solidariedade aos que, perdendo memória e identidade, a recuperam pela invenção do passado, ou pela promessa de um futuro forjado contra o olvido e contra o precário. É o que se lê em de seus mais belos poemas, "Contra a esperança", tramado num sutilíssimo confronto dialético entre a esperança e o desespero: "É preciso esperar contra a esperança./ Esperar, amar, criar/ contra a esperança/ e depois desesperar a esperança/ mas esperar,/ enquanto um fio de água, um remo,/ peixes/ existem e sobrevivem/ no meio dos litígios.". Numa época em que a contenção, o minimalismo, são erigidos, por muitos, à categoria de inviolável mandamento estético, pode surpreender a exuberância discursiva de Nejar, que o leva, por exemplo, ao cultivo do poema longo, ou mesmo ao poema-livro. A questão é complexa, pois percebemos que o "fluvial" corresponde apenas a uma das facetas de seu repertório de formas.
Tal repertório inclui igualmente a prática microscópica do haicai; atravessa, com excelente resultado, o livro de sonetos ( Amar, a mais alta constelação , Sonetos do paiol ); transita desenvoltamente da veia lírica à épica (solapando também as fronteiras entre prosa e verso) em várias obras, dentre essas a que concentra, talvez, o projeto de maior fôlego e de mais densa envergadura da poesia nejariana: A idade da aurora (1990). Classificado, pelo próprio autor, de "rapsódia", o texto, numa sucessão vertiginosa de metáforas ("E é um caracol a manhã pelo rugir das chamas"; "O mundo é uma baleia"), recria miticamente um Brasil de cores, sons, aromas, sob forma de uma fábula arquetípica a que não faltam traços de oralidade aliados a uma sofisticada trama de imagens. O poeta, mais do que criar metáforas para conotar um real que lhes seria preexistente, sugere que, ao contrário, só através da metáfora o real se pode constituir, como um de seus efeitos – seja uma pétala, seja um país.
Antônio Carlos Secchin é poeta, ensaísta, professor, autor de vários livros, entre eles, A Poesia de João Cabral de Melo Neto. Pertence à Academia Brasileira de Letras.